“A saúde é direito de todos e dever do Estado...”. Essa frase marca o início do artigo 196 da Constituição Brasileira de 1988. Da saúde, são apenas cinco artigos que deveriam ser memorizados por todos, principalmente por aqueles que se dispõem a administrar a máquina pública. Não é preciso sabedoria para entender que os constituintes reconheceram o desejo e o direito da população e colocaram como dever do Estado manter saudável o cidadão sem distinção de classe social, cor, idade, origem ou credo. Dentro desse entendimento, não há escolha para quem é eleito ou nomeado para administrar o Estado Brasileiro: é obrigação zelar e investir em saúde.
Não podemos permitir que, como vimos acontecer nas últimas semanas, uma questionável gestação passe pelo sistema e acabe numa cesariana sem bebê. O que e como fazer para que um absurdo desses não aconteça? Primeiro, conhecer os terrenos e os objetivos a serem alcançados, pois sem planejamento e estratégia não há batalha que possa ser vencida nem inimigo a ser conquistado.
Para existir saúde de uma comunidade, é necessário um complexo sistema que compreende ambiente externo (educação, moradia, água limpa, ausência de poluentes ambientais) e interno (alimentação, exercícios, lazer, tratamentos no início das patologias – prevenção de doenças hereditárias, nutricionais etc.) – tudo muito simples. Por que não conseguimos? Qual o caminho a seguir? Alguns desvios lógicos e estruturais tiraram o Sistema Único de Saúde (SUS) de seu objetivo e ele hoje encontra-se desorientado. É necessário rever e redirecionar ações.
Aprovar a Emenda Constitucional 29. O SUS precisa de verba suficiente para se estruturar e organizar seus serviços, unidades de atendimento e política de relações humanas. Aumentar a transferência de recursos da esfera federal para as esferas estadual e municipal, que são as maiores responsáveis pelo atendimento direto à população e conhecem as necessidades imediatas e importantes de cada região. A Emenda 29 define um pouco mais de dinheiro para a saúde, corrigindo e tentando evitar as manipulações estatísticas de todas as administrações públicas nas prestações de contas em final de ano.
Elaborar o Plano de Cargos, Carreira e Vencimentos Nacional (PCCV), necessário para correção de inúmeras incoerências que têm sido realizadas para satisfazer desejos imediatistas. A política de RH deve corresponder a uma realidade de complexidades, responsabilidades e valores que reflitam o panorama de formação de cada grupo funcional. Isso deve ser realizado em forma de salários, cargas de trabalho e investimentos materiais – a função de um odontólogo, de um enfermeiro, de um médico, de um agente de saúde não se reflete apenas em ter ou não um diploma universitário. A equalização e o nivelamento irreal de salários e obrigações têm demonstrado a manipulação perversa das relações trabalhistas no SUS, criando insatisfação e mal atendimento à população.
Os vencimentos são o atrativo maior e mais imediato para corrigir a deficiência de mão de obra especializada. Nivelar salários por baixo é pedir para ninguém aparecer e fazer concursos apenas para engordar os currículos profissionais. Passar e depois rejeitar o cargo é comum na área da medicina.
O Ministério da Saúde tem a Estratégia em Saúde da Família (ESF) para prevenir doenças e criar uma educação comunitária preventiva. É um programa ambicioso que pretende levar uma equipe multiprofissional a todos os acúmulos populacionais e é compromisso de cada município consolidar essa estratégia. Precisamos educar todos servidores públicos em relações humanas, principalmente aqueles com contato direto com o público. Sem educação não existe qualidade.
Hoje, verifica-se que o profissional contratado é imediatamente colocado na função. Não há explicações nem esclarecimentos sobre a função de servidor público, normativas do SUS etc. Nos concursos, pede-se, de maneira pouco clara, conhecimentos de algumas normas, quando há concurso, porque o normal é o uso de contratos temporários de trabalho, driblando a lei que exige que isso só ocorra nas emergências. É necessário que as universidades eduquem seus alunos naquilo que é obrigação constitucional: estratégia em saúde da família e saúde comunitária. A universidade não ensina a ESF como objeto de educação em saúde.
Os eleitos para cargos legislativos e executivos na máquina estatal devem ser educados em SUS, pois é comum secretários da Saúde sem noção do que é o sistema! Existe uma obrigação e uma necessidade ainda maiores de que os postos de saúde da atenção básica sejam eficientes e eficazes! A população precisa sentir que um posto de saúde resolverá o seu problema. Isso livrará os hospitais da procura constante para problemas simples do dia a dia. Resolutividade!
Na base filosófica da criação do SUS, visualizou-se que, com a população bem atendida e saudável, não haveria por que investir em unidades tão onerosas. Tudo muito correto se a atenção básica viesse a ser tão eficiente assim e que acabassem os traumas, apendicites agudas, os infartos etc... enfim que não existissem tragédias. Nem as doenças comunitárias sumiram nem as emergências e urgências reduziram.
Há necessidade de investimentos pesados em unidades vocacionadas e especializadas: hospital do trauma, hospital do câncer, hospital de clínicas. Pronto-socorros bem dimensionados e eficientes são extremamente importantes. Ambulatórios de especialidades com profissionais concursados, treinados e com real vínculo com o SUS.
Voltamos à necessidade de um plano de carreira real e que não vise a apenas uma parcela dos interesses envolvidos. Salários dignos para fisioterapeutas, para enfermeiros, para nutricionistas, psicólogos e médicos; conforme o grau de complexidade e responsabilidades das categorias. Um neurocirurgião, um especialista em traumas, um cirurgião cardíaco, um intensivista, um clínico geral deve ter seu grau de especialização e a obrigação de qualificação estimulados e até exigidos.
Impossível imaginar uma universidade envolvida com saúde sem o seu próprio hospital de clínicas. Vamos abrir uma faculdade médica, uma de enfermagem ou nutrição? Emergência e urgência não são lugares de estudante universitário nem de trabalhador barato. Há obrigação do Estado de regulamentar e controlar essas áreas.
Por que o medo de auditorias? O Ministério da Saúde tem o Sistema Nacional de Auditoria (SNA), porém os municípios não desejam e não contam com o serviço concursado e carreira de auditor. Os existentes são profissionais vindos da rede básica ou com contratos temporários de trabalho sem segurança de colocação. Precisamos de auditores concursados e permanentes. É preciso fiscalização autônoma e profissional no SUS.
Faltam médicos nas periferias, em cidades pequenas e de interior? Devemos lutar por uma carreira de estado para médicos, assim como há para juízes e procuradores. Fazer concursos públicos federais com designação para estes locais carentes com emprego garantido e remuneração suficiente.
Tendo feito uma leitura geral (União, Estado e Município), surgiram as deficiências da área em Joinville. Então, passo a focar em nossa região. Como está o atendimento pelo SUS?
Atenção primária – chama a atenção a grave deficiência de médicos e as severas falhas no atendimento da atenção básica à saúde. Postos mal aparelhados, deficiência séria de profissionais, principalmente médicos para dar à população segurança de uma medicina de qualidade, eficiente, eficaz e, principalmente, resolutiva. Está sempre faltando médicos de diversas especialidades básicas (pediatria, ginecologia, clínica médica).
Não adianta esperar pelo atendimento perto de casa. A solução é procurar os PAs 24 horas ou hospitais da região, onde a burocracia barra o encontro de uma atenção mais resolutiva. Hoje, contamos com uma medida interessante para resolver a grande procura aos pronto-socorros dos hospitais de urgências e dos PAs. Administra-se o aporte dos pacientes separando os graves dos não-urgentes (Protocolo de Manchester), porém não se oferece a outra ponta da solução, que é atenção básica de qualidade: os postos das unidades de atenção básica (ESF e postinhos).
Atenção secundária – exames de imagens e alto custo: você conseguiu uma consulta, depois de muito esforço em filas da madrugada e recebeu pedidos de exames. Se for exame de laboratório de análises clínicas, será feito rápido (15 dias). Mas um preventivo de câncer do cólo uterino levará, inexplicavelmente, de dois a quatro meses para se ter o resultado – nos consultários o resultado retorna em sete dias. Burocracia! Exames de imagem (tomografias, ressonância etc) nos emaranhados da burocracia municipal levarão, incluindo gestantes, de um mês a dois ou três anos. Não existe um Centro de Imagens no SUS. Um simples eletroencefálograma será enviado para outra cidade, provavelmente Florianópolis. Atoleiro burocrático!
Atenção terciária (rede hospitalar) – precisa internar? Operar? Esbarramos em mais um passo burocrático onde precisamos contar com muita boa vontade própria e dos funcionários. Todos se esforçam para enfrentar a falta de material, pessoal e organização e realizar um atendimento mínimo dos cidadãos necessitados. Há necessidade ainda de pelo menos 300 leitos para atender à demanda. Não há folga para que, em uma tragédia, se encontre lugar para atender à procura.
Tempo atrás perguntamos a um secretário da Saúde o que aconteceria se um avião caísse aqui no aeroporto e, “por infelicidade”, não morressem todos no local; o que fazer para atender no caso de um choque de dois ônibus na BR? A autoridade bateu na madeira e disse: “Deus nos livre de tal acontecimento”. Não existe previsão do que fazer num caso desses. Teríamos de sair correndo com ambulâncias cheias procurando lugar nas cidades vizinhas. Muitos morreriam por deficiência de atendimento, pois os hospitais trabalham lotados, assim como as UTIs, com leitos de PS e enfermarias como apoio.
Não há um hospital do trauma – o Hospital São José, além de atender a todo o Norte, não recebe por todas as internações e cirurgias realizadas. Obrigado a atender todos, a secretaria impõe limites rígidos à quantidade de Autorização de Internação Hospitalar. O São José tem de pedir esmola frequentemente e ouvir que não sabe administrar.
O Hospital Materno Infantil, assim como outros controlados pelo Estado, bota pose de bom menino, porém atende com limites e é o maior descumpridor de direitos trabalhistas, pela visão sindical, porque só contrata profissionais liberais como empresas jurídicas, lesando a lei e negando os benefícios da lei.
O tratamento de câncer, se não é apavorante, assusta pela insuficiência de meios e de pessoal. Os poucos leitos exclusivos ficam escondidos num canto vivendo do esforço de seus funcionários. A instalação do acelerador linear simboliza com clareza o desinteresse pela doença: dez anos de discursos vazios e inatividades até conseguirmos a instalação.
Por fim, podemos perguntar o que as universidades particulares locais podem e devem fazer por usufruir dos bens do serviço público. Utilização de instalações, funcionários e pessoas da população não tem preço? Quem repõe os custos de uma avaliação médica para ensinar estudantes de medicina, enfermagem de faculdades dentro do SUS? Um alerta final: um atendimento correto à saude depende de vontade política e aporte financeiro: nunca só de um discurso em época de eleições.