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Catando palavras daqui e dali...
Mario Gentil Costa (magenco@terra.com.br)
Outro dia, com um jornal aberto sobre o colo - e com o objetivo de enriquecer meu vocabulário - pus-me a sublinhar alguns termos mais raros, quando..., sem mais nem menos..., me ocorreu uma idéia: «os grandes pensamentos são, em geral, expostos em palavras simples, de uso comum.»
E essa ideiazinha boba me levou a outra mais boba ainda: «Por que(?), nesse caso, é tão difícil agrupá-las e combiná-las(?)... de molde a produzir um enunciado original, rico de conteúdo(?)... se ali estão, ao alcance de qualquer um?»
Resolvi, então, explorá-las mais a fundo, partindo do pressuposto de que as tais palavras simples deveriam estar ali..., justamente naquela efêmera edição de jornal..., espalhadas a esmo diante de meus olhos. E meti mãos à obra.
No próprio cabeçalho da primeira página, em chamativa manchete ecológica, estampada em letras garrafais, destacava-se uma delas: - natureza.
Tão corriqueira, ela, no entanto, me levou a Lavoisier, cuja lei, conhecida de todos, representa, sem dúvida, um dos pensamentos mais puros e essenciais já produzidos pelo cérebro humano.
O resto foi facílimo. O «Na», - com que a frase histórica começa, - encontrei logo na primeira linha do texto. O mesmo aconteceu com o «nada». Bem mais abaixo, escondidinho no meio de um rodapé de publicidade, achei o «se cria». Catei depressa, entre um monte de nadas, outro “nada” que se juntou, sem demora, a um «se perde»perdido alhures.
O ponto-e-vírgula que o segue, foi mais difícil, por incrível que pareça. Não sei por que é tão pouco usado...(;) trata-se, a meu ver, de uma utilíssima pontuação, se usada corretamente. Com algum esforço, acabei achando um e, sem perda de tempo, taquei-o no devido lugar.
Só faltava o «tudo se transforma», que, como é óbvio, consegui aos pedaços em poucos segundos. Pronto! Tinha ali, diante de mim..., destacado com tinta vermelha..., completo e irretocável..., o dito maior do imortal gênio francês: «Na natureza nada se cria, nada se perde; tudo se transforma».
Foi tão fácil, tão simples, tão imediato...
Todavia, até que viesse à luz, lá pelos idos de 1790, este definitivo e fantástico pensamento que dá margem, inclusive, a profundas especulações filosóficas, deve ter exigido do autor - cujo mérito reside em tê-lo expressado antes de qualquer outro - um inaudito esforço intelectual em torno do qual, neste instante de puro devaneio e com uma pequena dose de fantasia, faço ao caro leitor, o convite surrealista:
- Vamos viajar no tempo?
- Viajar no tempo? - estranharia você.
- É muito simples. Procure transportar-se ao século XVIII, como certamente já fez em outras leituras. Então..., vamos lá? Não é difícil imaginar um solitário e acanhado laboratório da época, úmido e insalubre, de paredes grossas e janelas fundas, iluminado por bicos de gás e escondido nos porões de uma mansão encarunchada, em algum perdido subúrbio de Paris dos tempos da Revolução Francesa. Veja a comprida mesa de trabalho, tosca, pesada e coberta de manchas, de um lado atulhada de grossos alfarrábios de folhas retorcidas pelo uso contínuo, todos abertos e iluminados por velinhas tremeluzentes; de outro, repleta de frascos, pipetas e retortas interligados por conexões de traçado caprichoso. Observe os líquidos borbulhantes, as fumaças coloridas subindo em loucas espirais. Sinta o cheiro do enxofre, do ácido sulfídrico. Aspire um pouco desse ar empestado.
Muito bem! Agora ponha, em meio a tudo isso, uma figura rara, vestida em calças justas a lhe moldar as pernas finas, a camisa branca e aberta ao peito, já encardida; as mangas arregaçadas, a cabeleira grisalha e longa a lhe escorrer pelos lados da calva precoce e, acima de tudo, seu olhar inquisitivo e questionador, a mover-se dos livros para os tubos de ensaio, a fazer e refazer experiências de resultados imprevisíveis e a registrá-las minuciosamente sobre um caderno abarrotado de números e símbolos.
Imagine, agora, a incessante e exaustiva batalha empreendida por esse admirável personagem; as noites insones que devem ter sido consumidas por esse versátil e benfazejo gigante chamado Antoine Laurent de Lavoisier, dono de uma quase dupla personalidade, que, de dia, se deixava passar por um mero funcionário público, para depois, nas caladas da noite, transmutar-se em gênio, enclausurado, horas perdidas, em tão pestilenta masmorra, a buscar respostas para os mistérios que lhe desafiavam a curiosidade, concentrado e absorto nos cálculos mais enigmáticos e entregue às mais insondáveis cogitações, invadindo e vasculhando impunemente a ciosa intimidade da química, da física e da matemática.
E, depois de tudo isso, saiba que, só após anos de secreta e obstinada busca, ele se expunha, com sua teoria revolucionária, à preconceituosa descrença e à costumeira inveja dos seus pares da Academia de Ciências de Paris, para, ao final, triunfar e deixar inscrito e afixado no panteão da história da humanidade, talvez..., de todos..., o princípio mais fundamental do Universo: - a irrevogável e suprema lei da indestrutibilidade da energia e da matéria.
Quais os valores que o fizeram escalar cumes tão altos?
Simplesmente a dúvida cética, mãe do conhecimento e da sabedoria, somada à curiosidade científica; nada menos que a inteligência, o talento e a genialidade que o faziam diferente dos mortais comuns, como eu ou você, que, em míseros segundos, somos capazes de lhe repetir as palavras básicas - catadas de uma simples folha de jornal - mas não saberíamos agrupá-las de forma inédita e, com elas, desvendar uma verdade eterna.
Por isso, não me canso de achar que “uma folha de papel em branco, um quadro negro vazio ou uma pauta musical sem notas, uma tela virgem por pintar ou um grotesco bloco de matéria bruta, somados ao silêncio e à solidão no seu sentido mais profundo, constituem, a meu ver, o mais formidável desafio imposto à inteligência, à criatividade e à sensibilidade humanas.”
Aí está o segredo: os números, as palavras, as notas musicais, as cores do arco-íris, a matéria-prima e as grandes idéias estão todos aí, no espaço e no tempo, e à nossa inteira disposição.
Mas poucos..., muito poucos mesmo..., são Lavoisiers, Mozarts, Castro Alves, Michelangelos, Voltaires, Carl Sagans, Bertrand Russells ou Einsteins, aptos a dispô-los harmoniosamente, de forma a produzir obras-primas ou conceitos que tragam, na essência, a vocação da imortalidade.

Beba na fonte

 


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