#

CFM atualiza resolução com critérios de diagnóstico da morte encefálica

O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou nesta terça-feira (12/12) a atualização dos critérios para a definição de morte encefálica, que agora poderá ser diagnosticada por mais especialistas, além do neurologista. A Resolução nº 2.173/17 substitui a de nº 1.480/97 e atende o que determina a lei nº 9.434/97 e o decreto presidencial nº 9.175/17, que regulamentam o transplante de órgãos no Brasil. “Nesses 20 anos de vigência da Resolução nº 1.480/97, mais de 100 mil diagnósticos de morte encefálica foram realizados no Brasil, sem que ocorresse qualquer contestação. No entanto, as transformações sociais e a evolução da medicina levaram o CFM a atualizar os critérios”, explicou o relator da Resolução nº 2.137/17, neurologista Hideraldo Cabeça.

De acordo com a lei nº 9.434/97, a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e de transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do CFM.

A Resolução CFM nº 2.173/17 estabelece que os procedimentos para a determinação da morte encefálica devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente. 

O quadro clínico do paciente também deve apresentar todos os seguintes pré-requisitos: presença de lesão encefálica de causa conhecida e irreversível; ausência de fatores tratáveis que confundiriam o diagnóstico; tratamento e observação no hospital pelo período mínimo de seis horas; temperatura corporal superior a 35º graus; e saturação arterial de acordo com critérios estabelecidos pela Resolução. No caso de crianças, os parâmetros são um pouco diferentes, com um período de observação maior.

“O paciente com morte encefálica é um desafio ao corpo clínico do hospital. A equipe multidisciplinar deve ter uma boa compreensão sobre os eventos fisiopatológicos que surgem após a lesão cerebral grave, levando o paciente ao coma não reativo e com ausência dos reflexos do tronco cerebral. Surgem distúrbios endócrinos, pulmonares e cardiovasculares que podem comprometer a perfusão e boa oxigenação de órgãos como, por exemplo, intestinos, pâncreas e rins, os quais, se não forem corrigidas de imediato, comprometem a função do órgão que eventualmente possa ser doado”, explica Hideraldo Cabeça. Pesquisa realizada com 320 pacientes com morte encefálica, mostrou que 88% tiveram parada cardíaca em até 24 horas após o diagnóstico e 100% em até cinco dias.

 

Paciente deve ser submetido a exames clínicos e complementares


Além do exame clínico, que deve ser realizado por dois médicos diferentes, com um intervalo mínimo de uma hora entre o primeiro e o segundo, o paciente deve ser submetido a um teste de apneia e a exames complementares. “É obrigatória a realização desses exames para que seja demonstrada, de forma inequívoca, a ausência de perfusão sanguínea ou de atividade elétrica ou metabólica encefálica e, também, para que se tenha uma confirmação documental da situação”, explica Hideraldo Cabeça.

Esses exames podem ser a angiografia cerebral, o eletroencefalograma, o doppler transcraniano e a cintilografia. O laudo deve ser assinado por profissional com comprovada experiência e capacitação para a realização desse tipo de exame.
O paciente também deve ser submetido a um teste de apneia, que estimula o centro respiratório de forma máxima. É necessária a realização de um único teste. Segundo Hideraldo Cabeça, vários estudos demonstraram que a realização de dois testes não aumenta a especificidade ou a segurança do diagnóstico.

O relator da Resolução nº 2.172/17 ressalta que os critérios brasileiros são conservadores e mais seguros do que o de outros países. “Na Alemanha, a morte encefálica é diagnosticada por apenas um médico e um exame complementar. E nos Estados Unidos o exame complementar é opcional”, conta. Pesquisas realizada no começo dos anos 2000, em 80 países, e publicada no New England Journal, em 2002, constatou que a participação dos dois médicos era exigida em 34% deles e em 59% era necessária a realização do teste de apneia.

Outro levantamento, realizado em 2015, incluindo 91 países, constatou que em 70% deles existia uma legislação específica para determinação da morte encefálica, sendo que em 60% havia a exigência de um médico com treinamento em neurologia, neurocirurgia ou terapia intensiva para realizar a determinação da morte encefálica. Em 56% dos países havia um critério específico para crianças.

 

Política de transplantes levou à definição da morte encefálica

A definição da morte encefálica passou a ser debatida entre a classe médica após a década de 1950, quando surgiram os primeiros aparelhos capazes de prolongar a vida artificialmente. Os primeiros estudos foram realizados pelos franceses Mollaret e Goudon, que, em 1959, descreveram 23 pacientes em coma profundo, sem reações e sem atividade de tronco encefálico e cuja atividade cardíaca se mantinha com suporte respiratório. No entanto, uma definição do que seria morte cerebral só foi dada em 1968, pela Harvard Medical Association (EUA).

Um mês após a realização do primeiro transplante de coração, realizado, em 1967, na África do Sul, foi criado, sob a coordenação do anestesista Henry Knowles Beeker, o Committee Ad Hoc, da Faculdade de Medicina de Harvard, que teve como função estabelecer os critérios da morte cerebral.

Em 5 de agosto de 1968, a revista Journal of the American Medical Association, publicou um artigo de autoria desse Committee reconhecendo o critério da morte cerebral, passando-se do conceito de morte fundado no coração ao fundado no cérebro. “Trata-se de uma evolução ainda maior, quando se considera que a morte cerebral é a condição essencial para a coleta de órgãos”, argumenta o professor italiano de bioética Antonio Puca.

De acordo com o relatório de Harvard, a morte cerebral, ao contrário do coma, é a expressão clínica de um dano encefálico total e irreparável, irreversível e definitivo. “O indivíduo não tem personalidade nem memória, e não pode sentir fome, sede ou emoções; ele também não consegue respirar nem manter a temperatura corporal sem auxílio de máquinas. As células mortas começam a decompor-se e as enzimas liberadas em razão disso agridem e destroem as outras, iniciando assim um processo inexorável”, explica Puca em artigo publicado na revista Bioethikos, do Centro Universitário São Camilo.

Os critérios estabelecidos em 1968 foram atualizados em 1981 pela President’s Commssion for the study of ethical problems a UDDA (Uniform Determination of Death Act, que estabeleceu dois critérios demorte: cessação irreversível da função respiratória e circulatória e cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco. Esses são critérios aceitos universalmente.

 

Estabelecida a morte encefálica, mais de 10 órgãos podem ser transplantados

 

O avanço das técnicas cirúrgicas, o uso de imunodepressores (ciclosporina) a partir de 1978 e uma maior segurança sobre a morte encefálica, levaram a um maior número de transplantes em todo o mundo. Após amorte encefálica, podem ser doados coração, pulmão, fígado, pâncreas, intestino, rim, córnea, esclera, osso, cartilagens, tendão, menisco, fáscia, valva cardíaca e membrana amniótica.

Em 2016, o Brasil realizou mais de 24 mil transplantes, sendo 14.641 transplantes de córnea, 5.492 de rim, 2.362 de medula óssea, 1.880 de fígado e 357 de coração. Segundo o Ministério da Saúde, pelo menos 41.525 pessoas aguardam na fila por um transplante de órgãos. A maior espera é por um transplante de rins, com cerca de 25.623 pessoas. A fila por um coração é de cerca de 350 pessoas.

O país que mais realiza transplantes per capita é a Espanha: 43,4 por milhão de habitantes (pmp). Nos Estados Unidos, o percentual é de 28,2; na França, de 28,1; na Alemanha é de 10,9 e no Brasil, de 16,2. Na Espanha, apenas 13,3% das doações potenciais não são concluídas. No Brasil, esse percentual é de 14,58%.

Após a determinação da morte encefálica e do consentimento da família, os primeiros órgãos a serem doados são os que duram menos fora do corpo, como o coração e o pulmão (entre quarto a seis horas). As córneas duram até sete dias e os ossos, até cinco anos.

Nem toda morte pode ensejar a doação de órgãos, apenas as causadas por politraumatismo, Acidente Vascular Cerebral (AVC), tumor cerebral primário, intoxicação exógena e anóxia (causada pós-afogamento). Mesmo nesses casos, são excluídos os possíveis doadores com doenças transmissíveis, neoplasia, uso de drogas injetáveis e cuja família tenha recusado a doação.

A negação dos familiares é apontada como uma das principais causas para o baixo número de doações. Segundo o Ministério da Saúde, 47% das famílias contatadas negam a autorização da doação.

O CFM tem a preocupação de que a família seja informada adequadamente. Na Resolução nº 2.173/17 e no seu anexo, é ressaltado que os familiares devem ser esclarecidos, de forma clara, sobre a situação crítica do paciente, esclarecendo-se o significado da morte encefálica, e também os resultados de cada uma das etapas da definição do diagnóstico. Será admitida a presença de médico de confiança da família do paciente para acompanhar os procedimentos de determinação da morte encefálica.

A família deve ser informada do diagnóstico de morte encefálica ou do não diagnóstico, no intuito de evitar qualquer dúvida em relação ao procedimento. O pedido para que a família decida sobre a doação de órgãos e tecidos deve ser feito após o diagnóstico definitivo da morte encefálica. “Os familiares já apresentam uma carga emocional grande, sendo necessário, portanto, que os médicos sejam orientados a fazer uma abordagem que respeite esse momento difícil de sentimentos e de tomada de decisão”, argumenta Hideraldo Cabeça.

 

Médico deve ter uma qualificação específica

Pelos critérios anteriores, a morte encefálica deveria ser diagnosticada por dois médicos, sendo que um seria obrigatoriamente neurologista, mas o outro não precisava ter nenhuma habilitação específica. Agora, pela Resolução nº 2.173/17, os dois médicos devem ser especificamente qualificados, sendo que um deles deve, obrigatoriamente, possuir uma das seguintes especialidades: medicina intensiva adulta ou pediátrica, neurologia adulta ou pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência.

Será considerado especificamente qualificado o médico que tenha no mínimo um ano de experiência no atendimento a pacientes em coma, tenha acompanhado ou realizado pelo menos 10 determinações de morte encefálica ou tenha realizado curso de capacitação. Nenhum dos dois médicos deve fazer parte da equipe de transplantes. As regras para esses cursos estão previstas em anexo da Resolução nº 2.173/17.

Para Hideraldo Cabeça, essa é uma mudança importante, pois agora será necessária uma formação específica para capacitar os médicos. “Temos de deixar mais médicos capacitados para dar, com segurança, esse diagnóstico”, conclama.

Na plenária que aprovou a Resolução, o 1º secretário do CFM, intensivista Hermann Tiesenhausen, ressaltou a necessidade de se garantir a segurança diagnóstica. “É preferível a perda de um órgão do que se colocar em risco uma política nacional bem sucedida, como é a de transplantes”, argumentou.

 

Cursos de capacitação devem ter um instrutor para cada oito alunos

Os cursos de capacitação devem ter duração mínima de oito horas, sendo quatro de discussão de casos clínicos. As aulas práticas dever ter um instrutor para no máximo um grupo de oito alunos e deve ser dado suporte remoto para esclarecimento de dúvidas por, no mínimo, três meses. Será obrigatório que o médico tenha experiência de pelo menos um ano em atendimento de pacientes em coma, como pré-requisito de participação no curso.

O coordenador do curso deve possuir capacitação comprovada em determinação de morte encefálica há pelo menos cinco anos e possuir residência médica ou título de especialista em neurologia adulto ou pediátrica, medicina intensiva adulta ou pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência.

O curso deve ensinar o conceito de morte encefálica, os fundamentos éticos e legais da determinação da morte encefálica, além de tratar do exame clínico, teste de apneia, exames complementares e comunicação da morte do paciente aos familiares. Os responsáveis pelos cursos devem ser os gestores públicos, ou dos hospitais.

 

fonte: CFM


  •