14-01-2008 - O gargalo do SUS

Dois assuntos debatidos na última Conferência Nacional de Saúde tiveram grande repercussão tanto entre os participantes quanto na mídia. A questão sobre a regulamentação do aborto, já permitido na legislação, e a gestão dos recursos humanos do SUS, com as propostas do Ministério da Saúde de criar organismos não estatais para administrar as redes de prestação de serviços à população. A primeira tem uma grande repercussão para fora do SUS, notadamente dos grupos religiosos, e com alto impacto na população em geral. A segunda, para dentro, com intensa mobilização das centrais sindicais e demais entidades de representação dos trabalhadores do setor.
Antes de mais nada é imperioso fazer o registro que essa foi a 13ª Conferência Nacional de Saúde, a 6ª que ocorre num período de 19 anos, cumprindo com folga o estabelecido nas Leis 8.080 e 8.142, que determinam sua realização a cada quatro anos. Seria infeliz e inconseqüente louvar o Ministério da Saúde apenas por cumprir a lei, mesmo nesses tempos em que vivemos, onde o desrespeito parece regra e seu cumprimento não é percebido como conseqüência natural da aplicação de normas de civilização e civilidade. Entretanto, as conferências têm sido muito mais que simples obediência às leis, elas têm sido fórum de debates onde a sociedade expõe suas idéias, seus anseios e suas necessidades. A sociedade fala e é ouvida. O governo fala, ouve e pondera. A sociedade exige e o governo tem que dar respostas. É a execução da sonhada democracia participativa.
Essa participação da comunidade, como, aliás, determina a Constituição para diversos setores, e que parece mais operante na saúde, consegue estabelecer diálogo constante e permanente entre a sociedade e a administração pública, o que também ocorre nos conselhos de saúde - no nacional, nos 27 estaduais e nos 5.562 municipais. Atualmente, nem o mais empedernido crítico do SUS avalia ser possível melhorar e consolidar suas conquistas sem a efetiva participação da comunidade. Existe o reconhecimento que um dos grandes, senão o maior, gargalo do sistema no momento é o aproveitamento deficiente dos recursos humanos do SUS para atendimento das necessidades da população. Ou seja, a população não está sendo bem atendida pelos trabalhadores do setor.
As conseqüências de anos de ausência de investimentos numa política de valorização dos e nos recursos humanos do SUS podem ser descritas assim: baixos salários, acúmulo de empregos, falta de cumprimento de horários, assiduidade precária e sem controle, número insuficientes de profissionais, falta de programas de treinamento, aposentadorias não programadas, não realização de concursos públicos e, quando esses ocorrem, procura reduzida pelos empregos. Os resultados estão à mostra: baixa eficiência, pouca resolutividade, eficácia pulverizada, desestímulo e desinteresse dos profissionais, mau atendimento, insatisfação generalizada, reclamações, impossibilidades orçamentárias, operacionais e legais para a solução, etc. etc. etc.
Razões, como dizia Sheakspeare, são como frutas silvestres, dão em qualquer lugar. Todos têm a sua dose de razão. Mas, se estão todos descontentes - população, trabalhadores e gestores do sistema -, é sinal de que o modelo está esgotado. Nessas discussões, tanto no conselho como na Conferência Nacional de Saúde, tem sido notada a não referência (que é o equivalente a uma negação), a uma realidade existente no âmbito interno do próprio Ministério da Saúde e do SUS. Trata-se da Associação das Pioneiras Sociais (APS) - entidade de serviço social autônomo, de direito privado e sem fins lucrativos. É a instituição gestora da Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor. A associação foi criada em 1991, pela Lei nº 8.246, e o caráter autônomo da gestão desse serviço público de saúde faz dela a primeira instituição pública não-estatal brasileira.
Um dos pontos enfatizados pelo ministro Temporão para a criação das fundações públicas foi, justamente, a possibilidade de estabelecer um contrato de gestão que explicitaria os objetivos, as metas e os prazos a serem cumpridos pela instituição prestadora do serviço, o que já ocorre com a APS, desde 1991. Mas o mais interessante da administração da Rede Sarah é uma inovação na esfera de gestão de pessoal. Todos os trabalhadores, sejam graduados ou não, médicos, enfermeiros, técnicos ou auxiliares, devem ter um único emprego e trabalhar apenas para a Rede Sarah. A dedicação é única e exclusiva.
Talvez, antes de detalhar a esfera de gestão, se estatal ou pública, seja possível discutir a concretização de um emprego único para os trabalhadores da saúde. Emprego único para todo o SUS, com carreiras diferenciadas, que permitam o desenvolvimento harmônico e a progressão funcional de todos os componentes da força de trabalho do Sistema Único de Saúde. Emprego digno, com salário recompensador, para prestar assistência decente.

Fonte: Jornal Correio Braziliense - 14-01-2008


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