07-12-2006 - P A R E C E R: Médico - Servidor Público Civil e Militar - Acumulação de Cargos - Possibilidade

PARECER:

- MÉDICO 
- SERVIDOR PÚBLICO CIVIL E MILITAR
- ACUMULAÇÃO DE CARGOS
- POSSIBILIDADE.

Solicita o Dr. JOÃO PEDRO CARREIRÃO NETO, DD. Presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina (SIMESC), parecer desta Assessoria Jurídica sobre a questão de cumulação de cargos públicos de médico, enquanto servidor militar e civil.
A regra geral a respeito da cumulação de cargos públicos diz respeito à vedação do exercício simultâneo de mais de um cargo. A exceção se encontra no art. 37 da Constituição Federal, que com a redação da Emenda Constitucional 19/98 dispõe:

‘XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro, técnico ou científico;
c) a de dois cargos privativos de médico;
[...]
XVII – a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público’.

A proibição de acumulação remunerada de cargos, empregos e funções, referente à Administração direta e às autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, subsidiárias delas e sociedades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público objetiva impedir que um mesmo cidadão ocupe vários lugares ou mesmo exerça inúmeras funções sem que os possa desempenhar com proficiência.

Segundo a lição de Hely Lopes Meirelles,

“As origens dessa vedação vêm de longe, ou seja, do Decreto da Regência, de 18.6.1822, da lavra de José Bonifácio, cuja justificativa tem ainda plena atualidade quando esclarece que por ele ‘se proíbe que seja reunido em uma só pessoa mais de um ofício ou emprego, e vença mais de um ordenado, resultando manifesto dano e prejuízo à Administração Pública e às partes interessadas, por não poder de modo ordinário um tal empregado público ou funcionário cumprir as funções e as incumbências de que duplicadamente encarregado, muito principalmente sendo incompatíveis esse ofícios e empregos; e, acontecendo, ao mesmo tempo, que alguns desses recebam ordenados por aqueles mesmo que não exercitam, ou por serem incompatíveis, ou por concorrer o seu expediente nas mesmas horas em que se acham ocupados em outras repartições” (in: Direito Administrativo Brasileiro. 28.ed. atual.. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 419).

Já Carmem Lúcia Antunes Rocha lembra que em Cartas Constitucionais anteriores - à de 1988 - traziam a expressa proibição de os aposentados poderem ser sujeitos de provimento de cargo público (In: Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999.p. 275).
Este entendimento geral encontra amplo apoio de José Afonso da Silva, que é esclarecedor:

‘A Constituição, seguindo a tradição, veda as acumulações remuneradas de cargos, empregos e funções na Administração direta e nas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações mantidas pelo Poder Público, significando isso que, ressalvadas as exceções expressas (infra), não é permitido a um mesmo servidor acumular dois ou mais cargos ou funções ou empregos, nem cargo com função ou emprego, nem função com emprego, quer sejam um e outros da Administração direta ou indireta, quer sejam um daquela e outro desta (art. 37, XVI e XVII).
Autorizam-se, contudo, exceções, para possibilitar a acumulação nos seguintes casos: a) de dois cargos de professor; b) de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) de dois cargos privativos de médico. As exceções, como se nota das alíneas do inc. XVI do art. 37, só se referem a cargos; como se trata de exceção ao princípio da inacumulatividade, é de ter-se o texto como excepcionando exclusivamente em relação a cargos, não permitindo acumulações com empregos ou funções. Reforça esse entendimento o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, quando asseguram o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos, respectivamente, de médico e de profissionais da saúde que estejam sendo por eles exercidos na Administração Pública direta ou indireta. Observe-se, também que, em qualquer das hipóteses excepcionadas, a acumulação só será lícita em havendo compatibilidade de horário, notando-se que a Constituição não exige mais a correlação de matérias entre os cargos acumuláveis de professores ou um de professor e outro técnico ou científico’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. Malheiros, 1991, 8ª ed., p. 585).

Conforme determinação constitucional é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, empregos e funções, abrangendo as autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público, ressalvadas algumas exclusões, com exceção dos cargos cumuláveis (art. 37, XVI, XVII e § 10).
O rol de exceções deve ser interpretado restritivamente, somente abrangendo aqueles expressamente enumerados, a saber, dois cargos de professor, um cargo de professor com outro técnico ou científico, e dois cargos ou empregados privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
Inquestionavelmente os médicos poderão cumular licitamente dois cargos públicos.
Mas se o médico for militar? A questão se torna problemática, com a leitura do Art. 142, da mesma Constituição Federal:

Art. 142 – As Forças Armadas, constituídas pelas Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
(...)
§ 3º - Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:
(...)
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente será transferido para a reserva, nos termos da lei;”

Os integrantes das forças armadas não são mais chamados de servidores públicos, mas simplesmente de militares, por força da nova redação ao texto constitucional, introduzida pela Emenda Constitucional nº 18/98.
No mesmo entendimento de encaminhar para a reserva, aquele militar que tomar posse em cargo ou emprego civil, encontramos na Constituição de Santa Catarina de 1989:

Art. 31 – São servidores públicos militares os integrantes militares da Polícia Militar.
(...)
§ 5º - O militar em atividade que aceitar cargo público civil permanente será transferido para a reserva.”

Nestes dispositivos constitucionais, acima transcritos, encontramos a observação de que se referem aos militares “em atividade”, e não àqueles já na reserva.
Objeto de inúmeros debates, a matéria foi especialmente cuidada pelo Supremo Tribunal Federal que, no Mandado de Segurança n. 163204-3 do Estado de São Paulo, decidiu não ser possível reunir proventos e vencimentos sem agravo ao disposto no art. 37, XVI e XVII, cujos destaques são:

a) a acumulação a que se refere a Constituição não é de cargos, mas de vínculos jurídicos, os quais não se rompem, apenas mudam de configuração ao passar o servidor para a inatividade, máxime quando aquele elo jurídico-funcional estiver estabilizado na forma constitucionalmente prevista; b) desde que haja uma remuneração, qualquer que seja o seu fator determinante – estar na ativa ou nela ter estado pelo período constitucionalmente previsto para aquisição do direito à aposentadoria – há acumulação para os efeitos da regra constitucional proibitiva.” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. ob.cit. p. 277)

Assim, em se considerando que a proibição se refere ao vínculo jurídico e que este não muda sua configuração nem quando o servidor passa para a inatividade, ou na hipótese castrense a reserva – obviamente que não se está falando das exceções constitucionalmente previstas – correto o entendimento de que haveria duplicidade remuneratória paga pelo erário público que seria ilegal.
Divergem desta ilação, apontando a possibilidade de cumulação dos proventos da reserva com a remuneração do novo cargo, os eminentes Celso Antônio Bandeira de Mello (Revista trimestral de direito público 12/86), Caio Tácito (Revista de direito público 10/52) e Maria Sylvia Zanela di Pietro, citada por Lúcia do Vale Figueiredo (Curso de direito Administrativo, Malheiros, 1998, 3ª ed., p. 513-4), bem como o Ministro Marco Aurélio (STF - RE n. 163.204).De qualquer sorte, naquelas hipóteses de já estar o militar na reserva, antes do advento da Emenda Constitucional nº 20 (publicada no DOU de 16 de dezembro de 1998), ficou ressalvado o direito da acumulação remunerada de cargos compatíveis.
Posicionamento este, corroborado nas seguintes decisões daquele excelso Pretório:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 53, DE 30.8.90. ESTATUTO DOS POLICIAIS MILITARES DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL. ART. 91, INC. VI E § 2º. RESERVA REMUNERADA E EXERCÍCIO DE CARGO PÚBLICO QUE NÃO O MAGISTÉRIO. ART. 37, XVI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Os dispositivos impugnados, pelo simples fato de possibilitarem ao policial militar – agente público – o acúmulo remunerado deste cargo (ainda que transferido para a reserva) com outro que não seja o de professor, afrontam visivelmente o art. 37, XVI da Constituição. Impossiblidade de acumulação de proventos com vencimentos quando envolvidos cargos inacumuláveis na atividade. Precedentes: RE n. 163.204, Min. Carlos Velloso, RE n. 197.699, Min. Marco Aurélio e AGRRE n. 245.200, Min. Maurício Corrêa. Este entendimento foi revigorado com a inserção do § 10 no art. 37 pela EC n. 20/98, que trouxe para o texto constitucional a vedação à acumulação retro mencionada. Vale destacar que esta mesma Emenda, em seu art. 11, excetuou da referida proibição os membros de poder e os inativos, servidores e militares, que, até a publicação da Emenda, tenham ingressado novamente no serviço público por concurso público de provas ou de provas e títulos, ou pelas demais formas previstas pela Constituição Federal“ (ADIn 1.541/MS, DJ de 4.10.02, Min. Ellen Gracie).

O e. Superior Tribunal de Justiça também segue esta linha de raciocínio:

“Nos termos do art. 11, da Emenda Constitucional n. 20 (a vedação prevista no art. 37, § 10, da Constituição Federal, não se aplica aos membros de poder e aos inativos, servidores e militares, que, até a publicação desta emenda, tenham ingressado novamente no serviço público por concurso público de provas ou de provas e títulos), é possível a cumulação de valores atinentes à aposentadoria oriunda de emprego público com vencimentos de cargo efetivo (estatutário), assumido por meio de concurso público. Precedente do STF” (ROMS 11.165/SP, DJ de 13.8.01, Min. Fernando Gonçalves).

Para os profissionais médicos, que mesmo sendo militar, já se encontrava ocupando cumulativamente dois cargos públicos, em 05 de outubro de 1988, foi contemplado pelo Art. 17, § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que:

“Art. 17 – (...)

§ 1º - É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta.”

Encontramos desta maneira, na própria Carta Magna dispositivos aparentemente antagônicos entre si. A regra geral não permite a cumulação de cargos, exceptuando para a hipótese dos médicos. A exceção seria somente para os servidores públicos civis e não para os militares? Evidente de que os mesmos necessitam de interpretação.
No sistema judiciário brasileiro, a interpretação da Constituição Federal, em última instância cabe ao Supremo Tribunal Federal.
Deste modo, oportuna a menção ao julgamento unânime do Recurso Extraordinário nº. 182.811-1, de Minas Gerais, pela 2ª Turma do Pretório Excelso, onde foi Relator o Ministro Gilmar Mendes, cuja ementa reproduzimos:

“Recurso extraordinário. 2. Acumulação de cargos. Profissionais de saúde. Cargo na área militar e em outras entidades públicas. Possibilidade. Interpretação do art. 17, § 2º, do ADCT. Precedente. 3. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (STF – 2ª Turma, RExt. 182.811-1, Minas Gerais, Rel. Min. Gilmar Mendes in DJU de 30/06/2006)

Naquele ”decisum” é transcrito posicionamento anterior que havia sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 212.160, em que foi relator o Ministro Carlos Veloso:

“Nesta linha de raciocínio, nada obsta que o art. 42, § 3º, da Constituição Federal, seja interpretado em consonância com os §§ 1º e 2º do art. 17 do ADCT, para admitir que o profissional de saúde, ainda que militar, possa exercer, cumulativamente, dois cargos ou empregos, um deles na administração pública direta ou indireta, sem correr o risco de ser transferido para a reserva, valendo-se da mesma garantia constitucional assegurada aos médicos militares.”

Portanto a mais alta Corte Brasileira deu sua interpretação aos dispositivos constitucionais referidos, considerando ser possível a cumulação de cargos públicos, mesmo sendo o médico militar. A partir de nova reflexão sobre questões que envolvem o tema objeto desta e de outras lides de idêntico ou semelhante teor, deverá sempre se acatar entendimento da colenda Suprema Corte.

O art. 28 da Lei n. 9.868/99, em seu Parágrafo Único, estabelece:

"A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal".

Tendo em vista que o referido dispositivo estabelece o efeito vinculante para as decisões de procedência em ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade, também tem efeito vinculante o julgamento que dá pela interpretação constitucional, como no caso em apreço, eis que equivale à decisão de procedência em ação declaratória de constitucionalidade.

No expressivo dizer do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ‘o Direito é uma coisa essencialmente viva. Está ele destinado a reger homens, isto é, seres que se movem, pensam, agem, mudam, se modificam. O fim da lei não deve ser a imobilização ou a cristalização da vida, e sim manter contato íntimo com esta, segui-la em sua evolução e adaptar-se a ela. Daí resulta que o Direito é destinado a um fim social, de que deve o juiz participar ao interpretar as leis, sem se aferrar ao texto, às palavras, mas tendo em conta não só as necessidades sociais que elas visam a disciplinar como, ainda, as exigências da justiça e da eqüidade, que constituem o seu fim. Em outras palavras, a interpretação das leis não deve ser formal, mas, sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. Indo além dos contrafortes dos métodos tradicionais, a hermenêutica dos nossos dias tem buscado novos horizontes, nos quais se descortinam a atualização da lei (Couture) e a interpretação teleológica, que penetra o domínio da valorização, para descobrir os valores que a norma se destina a servir, através de operações da lógica do razoável (Resaséns Siches). Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando contra legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum. Como afirmou Del Vecchio, a interpretação leva o Juiz quase a uma segunda criação da regra a aplicar. Reclama-se, para o juiz moderno, observou Orosimbo Nonato, na mesma linha de raciocínio, com a acuidade sempre presente nos seus pronunciamentos, quase que a função do legislador de cada caso, e isso se reclama exatamente para que, em suas mãos, o texto legal se desdobre num sentido moral e social mais amplo do que, em sua angústia expressional, ele contém’ (STF - REsp n.º 4.987).

Portanto, cabe ao julgador a interpretação do texto legal e, sobretudo do constitucional. Sendo assim, julgados como aquele antes referido do Pretório Excelso, podem e devem ser considerados como fonte do Direito:

“Não há como negar que a jurisprudência – juntamente com a doutrina – constitui fonte mediata de Direito (ROMS n.º 7.519, Min. Vicente Leal).” (Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, Saraiva, 1977, v. I, p. 12).

Deste modo, aquele entendimento de que entendia como impossível de cumular os cargos públicos de médico, sendo um deles militar, se acha definitivamente superado, pela interpretação fornecida pelo Supremo Tribunal Federal.

É o parecer.

s.m.j.,

Florianópolis, 07 de dezembro de 2006.


Luís Claudio Fritzen
Advogado – OAB/SC 4443
ASSESSOR JURÍDICO DO SIMESC


  •