A descoberta, pela Polícia Federal, no Rio de Janeiro, de um suposto esquema de fraude na fila de transplantes de fígado, que teria resultado na morte de duas crianças, tem conseqüências que se estendem além do crime e do desvio ético, ao demonstrarem como as deformações podem atingir uma causa tão nobre. A denúncia da fraude - na qual um médico receberia entre R$ 200 mil e R$ 250 mil para alterar a ordem dos contemplados - tende a prejudicar ainda mais quem está na expectativa de doação. A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos estima que a fraude reduza as doações pela metade. A estimativa reforça a necessidade de providências do poder público para reafirmar a lisura do sistema.
A contínua sensibilização da sociedade para a causa é o aspecto mais complexo. Conseguir doadores compatíveis é uma batalha nem sempre bem sucedida por razões óbvias. Entre elas, estão questões de ordem religiosa e moral, às quais se somam as suspeitas de uma operação fura-fila, que contribui para limitar o número de doadores.
O resultado é que, em 2007, um levantamento apontava redução no número de doadores pela terceira vez consecutiva. A exceção foi Santa Catarina, onde houve crescimento. Um paciente à espera de rim no Rio Grande do Norte pode ter que esperar 28 anos. A dificuldade impede os pretendentes a uma doação de ter uma qualidade de vida melhor e pode levá-los à morte, o que é inaceitável.
O pior que poderia ocorrer para quem está à espera de um órgão é a suspeita de manipulação na fila dos candidatos a uma doação. É inconcebível que uma atividade nobre acabe na mira de quem não hesita em transformar tudo em comércio. Por isso, o setor público precisa agir com rigor para que sejam preservados os critérios de compatibilidade com o receptor e a gravidade do estado clínico na definição de quem deixará a fila da esperança para arriscar uma possibilidade concreta de melhoria na qualidade de vida.
Fonte: AN - 01-08-2008