06-10-2008 - SUS completa 20 anos e combina avanços inegáveis com problemas clamorosos

O sistema que contribuiu para erradicar a poliomielite no Brasil é o mesmo que deixa crianças e adultos morrerem de dengue. No país que exibe um dos mais bem-sucedidos tratamentos públicos de Aids do mundo, pessoas esperam meses por consultas para doenças menos complexas. Uma rede com programa de transplantes que figura entre os maiores do planeta não significa, necessariamente, facilidade para fazer uma simples ecografia. A três dias de completar 20 anos de existência, o Sistema Único de Saúde (SUS) é sinônimo de contradição. Os avanços são incontestáveis. Especialistas advertem, entretanto, que problemas como falta de financiamento, gestão deficiente e dependência de serviços privados podem enterrar a rede pública de saúde brasileira.
Para o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o “subfinanciamento crônico” é o principal desafio. Ele menciona pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual 62% de todos os gastos em saúde no país são feitos pelas famílias, e apenas 38% pelo governo, e defende a regulamentação da Emenda Constitucional 29 — que determina percentuais de aplicação de verbas na área por estados, municípios e pela União. “Ela (a emenda) definirá o que são gastos em saúde. Somente com a correta aplicação dos recursos estaduais serão adicionados ao setor mais de R$ 5 bilhões. O texto também definirá uma maior parcela de valores que serão colocados pelo governo federal na saúde”, afirma o ministro.
Embora defenda a definição de uma fonte de financiamento para o setor, o presidente do Conselho Nacional da Saúde, Francisco Batista Júnior, não concorda que dinheiro deva ser a grande preocupação. Para ele, é preciso, além de mais investimentos, mudar a mentalidade de servidores, gestores e da própria população. “Estamos educados para exigir cada vez mais leitos, mais remédios, mais médicos. Ou seja, queremos curar a doença, e não preveni-la. Precisamos inverter essa lógica. Um exemplo é a grande quantidade de hipertensos e diabéticos que existem no Brasil. Por que não investir pesado em diagnóstico precoce antes que aquela pessoa precise de exames mais complexos, de medicamentos mais caros, de transplantes?”, questiona.

Abaixo do esperado
Na avaliação de Paulo Argollo, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), o SUS está muito aquém do que se esperava 20 anos depois de sua criação. “Não tenho dúvidas de que conseguimos avanços em relação ao que se tinha antes, mas há distorções graves que precisam ser revistas”, afirma o médico. Uma delas está na quebra do princípio da gratuidade que, de acordo com Argollo, ficou caracterizada com o programa Farmácia Popular, que comercializa medicamentos a baixo custo. “Ora, o governo vende mais barato aquilo que deveria te dar de graça, conforme determinação constitucional”, critica o presidente da Fenam.
Outra falha grave, segundo Argollo, é a falta de controle social no setor da saúde, que deveria ser exercido por meio dos conselhos municipais e estaduais (formados por representantes dos usuários, de prestadores de serviços e profissionais da área). “Muitos se tornaram aparelhos políticos do prefeito, do governador”, afirma o médico.

O SUS EM NÚMEROS

- 140 milhões de pessoas (75% da população brasileira) dependem da rede pública para atendimento
- 400 medicamentos são ofertados nos três níveis de atenção: básica, estratégicas e de alto custo
- 28,1 mil equipes de saúde atendem 91,8% dos municípios brasileiros por meio do Programa Saúde da Família
- 82 milhões de pessoas dispõem de atendimento de saúde bucal por meio do Programa Brasil Sorridente
- 25 centrais estaduais viabilizam o maior programa público de transplantes de órgãos e tecidos do mundo, tendo realizado 15 mil transplantes no ano passado
- 3 mil pessoas são beneficiadas com o pagamento mensal de auxílio-reabilitação por meio das ações da Saúde Mental 
- 130 milhões de vacinas são aplicadas por anoR$ 84 bilhões é o montante de despesas totais com saúde no Brasil, sendo 48,5% gastos federais.
- 10% dos postos formais de trabalho no país estão na área de saúde

Entrevista - André Luiz Bonifácio de Carvalho: “É preciso qualificação”
Especialista em saúde coletiva, o fisioterapeuta André Luís Bonifácio de Carvalho atua como diretor do Departamento do Monitoramento e Avaliação da Gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) desde o ano passado. Foi secretário municipal de Saúde de Campina Grande, na Paraíba, em 2003, e reconhece a dificuldade e a necessidade de articulação entre as esferas federal, estaduais e municipais para superar as limitações na atenção à saúde, mas dá dicas de qual seria um caminho a percorrer na superação do problema. “É fortalecer a atenção básica, estruturando complexos regionais de saúde”, ensina. Ao falar ao Correio sobre os 20 anos do SUS, reconhece que as diferenças regionais do país também atingem a área de saúde e acredita que o programa Saúde da Família e a ampliação da formação profissional ajudem a combater o gargalo no atendimento da população.

Por que em 20 anos o SUS não conseguiu minimizar problemas como hospitais lotados, demora no atendimento e limite no número de vagas para consulta?
Hoje a demanda é extremamente superior à capacidade que a rede tem por conta das inúmeras diferenças regionais que este país tem. Mas um caminho é fortalecer a atenção básica, estruturando complexos regionais de saúde. Um processo como esse implica articulação dos gestores, organizando suas redes públicas.
E quando será promovida essa organização?
Isso está sendo viabilizado por meio do programa Saúde da Família.
Mas como articular os governos e superar a deficiência na contrapartida de gestores estaduais e municipais?
Um ponto importante para essa superação é a regulamentação da Emenda 29, com definições claras do que são gastos em saúde. Essa definição ordenaria os orçamentos públicos. A discussão posterior seria como ordenar melhor esses recursos.
A carência de profissionais de saúde é outro ponto a ser superado pelo SUS, não?
Inclusive no processo de formação é preciso qualificação da gestão da rede de atenção básica de saúde. É um processo que está em curso e no qual o ministério vem investindo, junto com estados e municípios.

Fonte: Correio Braziliense - 06-10-2008


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