Apesar dos esforços para conscientizar a população sobre a importância de permitir a doação de órgãos de familiares com morte encefálica, o Brasil ainda apresenta uma taxa de doadores quase seis vezes inferior à da Espanha, país com o melhor desempenho nesse quesito.
Enquanto entre os espanhóis há 35 doadores de órgãos para cada milhão de habitantes, conforme dados de 2007, os brasileiros ficam na marca de seis doadores por milhão. Santa Catarina, que costuma dividir com o Rio Grande do Sul as melhores taxas no país, atualmente apresenta 14,8 doadores por milhão de habitantes/ano. Esse número é equivalente ao encontrado no Reino Unido, por exemplo. Embora o Estado tenha a melhor média nacional, ainda está distante de países como a Espanha, onde a média é de 35 doadores por milhão.
Os espanhóis conseguiram multiplicar o número de doações graças à implementação de uma bem treinada rede de captação que se dedica a identificar possíveis doadores, garantir que mantenham as condições clínicas necessárias para a retirada dos órgãos e conversar com os familiares em meio ao sofrimento para obter autorização para o procedimento. Um dos segredos é justamente reduzir a proporção de parentes que se negam a permitir a doação. Nos anos 1990, esse índice era de aproximadamente 30%, e hoje caiu pela metade.
Em Santa Catarina, por exemplo, no mês passado foram emitidas 34 notificações de possíveis doações de órgãos - das quais 16 foram efetivadas. Em cinco casos - o equivalente a 14,7% - , os médicos depararam com a negativa dos familiares. Em outros dois, o coração parou de bater antes da retirada e inviabilizou a utilização dos órgãos e em 11 a cirurgia não foi possível por outros motivos.
No Brasil, hoje, cerca, de 72 mil pessoas aguardam na fila por um transplante, estima o Ministério da Saúde. As filas de transplante são administradas pelos estados, e as cirurgias são pagas pelo SUS. Se todos os parentes das vítimas de morte encefálica seguissem o exemplo da mãe de Eloá, muitos outros brasileiros poderiam receber uma nova esperança.
Lista de espera no Estado
Em 30 de setembro
Coração 6
Medula óssea 24
Córnea 894
Rim/pâncreas 0
Fígado 86
Pâncreas 0
Osso 49
Rim 238
Total: 1.297
A decisão deve ser íntima e sigilosa"
Entrevista: Joel de Andrade, coordenador da SC Transplantes
O coordenador da SC Transplantes, Joel de Andrade, criticou ontem a condução da doação dos órgãos da jovem Eloá. Ele defende que o treinamento dos profissionais seja intensificado e a discussão em ser ou não doador se torne ampla na esfera pública, mas é contra a propaganda maciça do governo. Confira a entrevista abaixo:
Diário Catarinense - O senhor acha que haverá um reflexo no número de doações depois do caso Eloá?
Joel de Andrade - Normalmente acontecem mais doações, mas é um efeito transitório. Agora, acho que esse caso foi um "estupro familiar". A decisão sobre doar ou não é muito íntima e sigilosa, mas a mídia mostrou a morte encefálica da jovem e que havia uma espera pela resposta da família. Se a notícia tivesse parado na informação da morte encefálica, e, no outro dia falasse que a família autorizou a doação, tudo bem. Mas a família foi colocada na pressão por doar.
DC - Como o senhor avalia a situação vivida pela família?
Andrade - Na minha opinião particular - não de médico - , a polícia teve dois erros grosseiros durante o seqüestro: o primeiro de deixar a outra vítima retornar ao cativeiro e o segundo de não matar o seqüestrador antes da tragédia. A família ficou totalmente desassistida pelo governo, e, se dissesse que não gostaria de doar os órgãos da filha, acho que teria motivos. Não consigo aceitar que jogaram a família à execração pública.
DC - O que o senhor acha que o governo faz errado na questão da doação?
Andrade - Quando faz propaganda do tipo "doe órgãos". A pessoa acaba pensando que, além do governo não dar assistência de saúde, cobrar impostos e etc. ainda quer que eu doe órgãos. Acho que a melhor forma é levar a discussão sobre a doação para a mídia, para as escolas secundárias e para as universidades. O governo tem a obrigação é de preparar os profissionais que trabalham com doação.
DC - Falta discussão sobre a doação?
Andrade - Não há nas faculdades de Medicina do Estado uma disciplina curricular que trate sobre a morte encefálica e a doação. Cito só a de Medicina, mas a disciplina deveria estar integrada em cursos ligados ao assunto. No país, há somente três cursos de pós-graduação voltados para a doação, dois em São Paulo e um em Santa Catarina, no Hospital Santa Isabel, de Blumenau, em parceria com a Univali.
DC - A legislação brasileira é adequada em relação ao desejo de ser ou não doador?
Andrade - Sim. No Brasil, a decisão antecipada não tinha esclarecimento suficiente por parte da população, além de gerar um movimento burocrático grande. O mais simples era a negativa.
Fonte: Diário Catarinense - 22-10-2008