24-11-2009 - Exagero de escolas médicas - Por Adib Jatene*

O ensino médico vem enfrentando, há muitos anos, uma série de problemas de difícil solução, que se agravaram significativamente desde 1996. Até então existiam no País 82 faculdades de medicina, das quais 51 (62,12%) públicas. As demais 32 eram privadas, ou seja, 37,88%. Assinale-se que entre 1966 e 1971 foram criadas 35 faculdades de medicina, das quais 22 privadas.
Várias dessas escolas tinham deficiências detectadas, que exigiam correção. Esclareço que para o egresso poder exercer a atividade é necessária a autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu Estado, materializada pela carteira profissional. O CRM funciona, no caso, como um cartório, ou seja, apresentado o diploma, o fornecimento da carteira profissional é automático.
A proposta, em 1989, de avaliação pelo CRM, ao final do curso, para o fornecimento da carteira profissional apenas aos aprovados causou grande celeuma, que levou à constituição da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), a qual resultou da união de 13 entidades profissionais, com a finalidade de identificar deficiências e ajudar escolas a resolver problemas, tendo atuado por mais de dez anos.
Embora o esforço tivesse todo o mérito, não conseguiu evitar que se criassem mais escolas com mesmas deficiências já detectadas nas existentes, especialmente relacionadas ao campo de treinamento, que exige complexo médico, hospitalar e ambulatorial com volume de atendimento e profissionais não só em número e qualificação, mas em condições de se dedicarem aos alunos para formá-los atendendo aos quatro requisitos básicos: aquisição de conhecimento, desenvolvimento de habilidades, ética e compromisso social.
Ocorre que de 1996 até o presente, decorridos apenas 13 anos, foram criadas 96 faculdades de medicina, das quais 69 (71,87%) privadas e 27 (28,12%) públicas. Mesmo assim, continua forte pressão para abertura, por cerca de 60 outras instituições, de novas faculdades de medicina. Foi nesse clima que o exame do Enade identificou 17 faculdades com nota inferior a 3. Convocados pelo ministro Haddad, da Educação, conseguimos recriar a Comissão de Especialistas do Ensino Médico, que estava extinta, para assessorar a Secretaria do Ensino Superior (SESu). A comissão foi estruturada com 15 membros, entre os quais quatro ex-presidentes da Associação Brasileira de Educação Médica e os demais que há décadas se vêm debruçando sobre o problema.
Inicialmente propusemos, e foi aceito pela SESu e pelo Inep, adequarexigências para autorização de abertura de um novo curso médico. Ficou estabelecido, entre outras condições, que a entidade deveria demonstrar que possui complexo médico, hospitalar e ambulatorial, funcionando há pelo menos dois anos, como referência regional, com número de leitos igual, pelo menos, a quatro vezes o número de vagas, com serviço de emergência e com atendimento ambulatorial, servindo de referência a uma rede básica. Esse complexo deveria ter um volume de atendimento que garantisse o treinamento clínico adequado, bem como instalações para internato nos dois últimos anos, residência médica nas cinco grandes áreas da medicina (Clínica Médica, Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia, Cirurgia Geral e Medicina Social), tudo como condição eliminatória.
Na hipótese de o ensino ser feito em hospital conveniado, o requisito é que não seja compartilhado com outra escola, ficando exclusivo da conveniada, com a responsabilidade de que o diagnóstico e orientações terapêuticas fiquem com os professores da faculdade. Isso evita que os alunos sejam alocados em hospital assistencial, geralmente público, sem assistência dos docentes da faculdade.
O fato de se criarem 96 faculdades de medicina em 13 anos, por si só, representa um escândalo sem paralelo, em qualquer parte do mundo. Apenas para comparar, os Estados Unidos têm 131 faculdades de medicina. Conseguimos acordar que o Ministério ouvisse a Comissão de Especialistas antes de autorizar qualquer nova faculdade de medicina, até que todas existentes sejam convenientemente avaliadas. O grupo das 17 faculdades com nota menor que 3 no exame do Enade de 2007 já foi avaliado, o que resultou em medida cautelar para cinco delas, com suspensão do vestibular em duas e redução do número de vagas em três 15 das 17 escolas envolvidas celebraram Termo de Saneamento de Deficiência, cujo resultado final será proferido no início do próximo ano outras duas atenderam às exigências e estão funcionando regularmente.
Todas escolas com problemas deverão ser visitadas e estamos colocando para discussão a possibilidade de três exames de avaliação, ao final do 2º, do 4º e do 6º anos, de modo que deficiências detectadas durante o curso propiciem medidas corretivas e em tempo. Por exemplo, a avaliação dos cerca de 17 mil alunos de todas faculdades ao fim do 2º ano permitiria comparações pertinentes entre escolas e aquelas cujos alunos demonstrassem desempenho considerado insuficiente teriam o seu exame de ingresso suspenso.
Como vivemos num Estado de Direito,medidas corretivas devem ser tomadas com a prudência necessária para, de um lado, evitar que a população seja atendida por profissionais que não tenham adquirido a capacitação,habilidades e os compromissos éticos e sociais indispensáveis à profissão, que trata não das coisas que pessoas têm, mas das próprias pessoas, que devem ser protegidas, e, de outro, não cometer exageros capazes de gerar ações judiciais. Todos os cuidados têm o objetivo de impedir que pessoas com formação deficiente e insuficientemente treinadas ponham em risco a saúde da população.

*Dr. Adib D. Jatene é professor emérito da FMUSP e representante do Conselho Consultivo no Conselho Curador da Fundação Zerbini

Fonte: 24-11-2009

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